segunda-feira, 7 de junho de 2010

Eu Entro



Vamos começar com essas duas imagens acima. Provocantes? Elas são de um conhecido fotógrafo americano, Duane Michals, que começou a aparecer no circuito artístico nova-iorquino em meados dos anos 60. Suas sequências de fotos, com legendas que sugeriam uma narrativa (muitas vezes onírica), tornaram-se uma espécie de marca registrada – copiada indiscriminadamente até hoje…


Esses dois trabalhos que abrem o post são dos anos 80, mas têm a ver com os temas que o fotógrafo explora desde o início de sua carreira: o desejo – e nossa relação (nem sempre transparente, nem sempre feliz) com ele. Nesses trabalhos, Michals não poderia ser mais direto: eles se chamam “A parte mais bonita do corpo da mulher” e “A parte mais bonita do corpo do homem” – isso, claro, segundo o artista. “Nos sonhos mais antigos dos homens, os seios das mulheres persistem mesmo por muito tempo depois que seus desejos tornaram-se poeira”, escreve ele, em sua caligrafia claudicante, sobre o detalhe do corpo feminino. Sobre a cintura masculina, ele ressalta suas “curvas gêmeas delineadoras, femininas em sua graça, ’sulcando’ o tronco, guiando os olhos para baixo, rumo sua intersecção – o ponto do prazer”.


Você consegue dar definições mais inspiradas – dessas ou de outras partes do corpo humano (quem sabe onde você esconde seu desejo é você!), feminino ou masculino? Eu gostaria de ler…


Essas imagens me inspiraram por décadas (conheci o trabalho de Michals mais de perto quando morei em Nova York, em 1989), e não é à toa que eu as escolhi para falar hoje sobre nudez – numa continuação do assunto que propus no post anterior (mais sobre isso, daqui a pouco). Belas como elas são, você diria que essas fotografias seriam capazes de ofender o público médio? Posso afirmar quase com certeza que seu autor não as criou com essa intenção – e eu mesmo não tenho motivo algum para achá-las ofensivas.


Porém, elas foram o pivô de um episódio bastante pessoal, que vou relatar agora: há alguns anos fui convidado a preencher um espaço visual de um restaurante em São Paulo. É uma espécie de vitrine rotativa, onde frequentadores do local e artistas (no seu mais amplo significado, de designers a poetas), há anos, expõem suas idéias. Eis que um dia, fui eu então convidado a ocupar aquele espaço (enquanto frequentador, claro, não como artista…). Eu teria, teoricamente, a liberdade de apresentar qualquer idéia – e então me ocorreu que eu poderia fazer uma singela (insignificante, na verdade) homenagem às fotos do artista que tanto prazer me deu. Propus fotografar as mesmas partes do corpo masculino e feminino eleitas por Michals como as mais bonitas – mas os modelos seriam os garçons e garçonetes do próprio restaurante (famoso, entre outras coisas, por selecionar para o trabalho de servir as mesas o melhor da juventude que está querendo fazer um dinheiro enquanto termina a faculdade e/ou espera uma chance de montar um espetáculo).


Eles não seriam identificados – talvez apenas por seus namorados ou namoradas -, uma vez que as fotos originais não mostram os rostos, e eu pretendia seguir à risca esse modelo (inclusive no branco e preto). E com um “staff” de cerca de 20/30 pessoas, o anonimato estaria quase garantido. A resposta do restaurante: a idéia era ousada demais e poderia incomodar os clientes. Fiquei meio decepcionado com essa resposta – especialmente porque ela vinha de um lugar que se orgulha até hoje de servir hambúrgueres e outros quitutes para a fina flor da vanguarda artística… (não me sinto, nem de longe, um “artista de vanguarda”, mas você entendeu a decepção, não?).


Agradeci o convite, claro. Acabei não fazendo nenhuma instalação. E fiquei pensando… Já em pleno século 21, o que será que incomoda tanto as pessoas quando o corpo humano nu está em questão? De vez em quando – se vejo um trabalho de arte poderoso – essa inquietação volta à tona. E foi justamente a propósito da retrospectiva da artista performática Marina Abramovic, no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que decidi convidar você para essa discussão. Nascida na extinta Iugoslávia, mas radicada nos Estados Unidos, Abramovic ficou conhecida por suas performances onde, desde o início dos anos 70, ela explora “os limites do corpo”.


Falar que uma artista envolvida com performances “explora os limites do corpo” é quase um pleonasmo (por isso as aspas na expressão). Mas no caso de Abramovic essa descrição é bem precisa. Se você visitou a última Bienal de São Paulo, talvez tenha esbarrado com uma série de vídeos de trabalhos antigos seus – e tenha ficado fascinado (como eu fiquei). Se não cinhece nada do seu trabalho, o youtube está aí para isso mesmo… Mas nessa exibição do MoMA – que termina no dia 31 deste mês e, ao que tudo indica, eu não vou conseguir visitar – a idéia foi não apenas mostrar vídeos, mas remontar um conjunto de suas performances mais importantes – com outros artistas/modelos -, e acrescentar mais um trabalho inédito.


Sua performance criada especialmente para a ocasião chama-se “The artist is present” (”A artista está presente”), e trata-se, tão somente, da figura da própria Marina Abramovic sentada numa cadeira olhando para quem quiser sentar-se na cadeira vazia em frente dela (se você quiser acompanhar ao vivo essa perfomance, o MoMA tem um link direto nas horas em que o museu está aberto). Só isso. Durante todos os dias da exposição.


Para este trabalho, a artista está  vestida… Mas o nu, que sempre esteve presente em suas performances passadas, está espalhado por várias peças da retrospectiva, causando diferentes níveis de desconforto e constrangimento nos visitantes. E talvez nenhuma delas incomode tanto quanto a que eu descrevi no meu último post, onde um homem e uma mulher nus ficam (quase) imóveis no meio de uma passagem, obrigando a quem quiser atravessar de uma sala para outra a esbarrar (quando não roçar) em um deles – possivelmente nos dois.


Foi engraçado ver algumas resposta enviadas à minha inocente pergunta “você entraria na sala?”. “Que graça teria a vida se a gente não aproveitasse as coisas diferentes”, escreveu a Magaly (que entraria). “Talvez entrasse engatinhando porque entre as pernas dos dois tem um espaço maior”, mandou Cesar Marx. “Não entro na sala não, fico no espaço estreito – se o casal for mais bonito que o da foto”, sugeriu espertamente o Caio. “Um pouco constrangida, sim, mas acho que passaria… Corpos nus na entrada?? Imagina o que terá lá dentro”, provoca Cynthia. “Arte?! Oh, claro… Não, muito obrigado”, ironizou o Márcio. A Yumi não entraria: “Não que eu ache feio e que não seja normal, mas é que me incomoda muito esse tipo de situação”. “Sem pestanejar, eu entraria, claro, esfregando-me no nu feminino”, arriscou o Bruno Silva, esquecendo-se talvez que o outro lado do seu corpo estaria “se esfregando” no nu masculino…


O fato é que ninguém ficou indiferente à idéia proposta – e posso ter quase certeza de que mesmo quem não mandou um comentário, mas leu o post, pensou no assunto… O mérito dessa provocação não é meu, claro, é da artista – que é genial! E que mérito é esse? O de nos fazer sentir provocados por uma coisa que parecia já conquistada: o nu. (Como observou bem Eva Pfannes, que “matou a charada” que eu propus logo no primeiro comentário”). Por que essa reação, se como eu já coloquei anteriormente – e vários comentários reforçaram – um corpo nu está longe de ser novidade? E não só nas artes plásticas? O nu não é novidade nem no nosso cotidiano – você mesmo, aqui neste espaço “livre” conhecido como internet, nunca caiu na tentação de conferir uma página de pornografia? Mais de uma talvez? Quem sabe ontem à noite… Mesmo assim, é pensar no assunto e sentir um frisson…


Sei que falar de pornografia é  um caminho fácil – até porque, é a forma mais hipócrita (e menos poética) de apreciação do corpo humano. (Com isso, claro, não estou pregando um discurso moralista em defesa do pudor, mas sim despindo, com o perdão do trocadilho, essa forma de erotismo de qualquer pretensão artística…). Mas como medir a honestidade de quem ainda tem receio de aceitar um desafio como esse proposto por Abramovic, mas não tem barreira alguma quando a idéia é se esbaldar num imaginário sexual virtual?


São coisas diferentes, claro… Mas a, digamos, matéria-prima é a mesma: um corpo nu. E nós temos sim um problema com isso. A começar pela referência ao nosso próprio corpo… Mas antes que isso vire uma discussão barata freudiana, quero só concluir dizendo que eu me divirto com essas provocações. Ainda mais neste país – este nosso país! – onde, desde o descobrimento, temos dificuldade em ocultar as carnes… Na exuberância dos trópicos, aprendemos a admirar corpos nus (ou seminus) – e a nos aproveitar deles. Tenho um prazer especial em, quando eu viajo a outro país, me apresentar como brasileiro e receber e receber aquele olhar de quem quer dizer: “ah, daquele lugar onde todo mundo anda pelado…”. E – talvez até, admito, por causa do meu passado ligado à dança – não tenho a menor dificuldade nem de encarar nem de exaltar (e eventualmente experimentar) um corpo nu. Ele deve sempre ser celebrado!


Mas admito que essa é uma relação complicada para muitas pessoas. O que não significa que a gente não possa se divertir discutindo isso por aqui.

Fontes: Globo.com
Marina Abramovic, Moma The Museum Of Modern

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